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Sobre tragédias, abutres e operários

A tragédia com o avião na Índia acendeu alertas na memória do nosso cronista, que trouxe à tona uma cartinha escrita para a filha no dia em que um avião caiu em Belém

Por Paulo Silber

Nós tínhamos nossos próprios planos para este sábado sem água nas torneiras da Cremação. Por incrível que pareça, eu não estava nos seus nem você nos meus. Amanhã, sim, nossas agendas marcam um domingo feliz. Coube ao imponderável conectar nossos rumos, no hiato de caminhos alheios e pelo condão de uma tragédia: a queda do avião dos paraquedistas no terreno da Embrapa.  

Veja como são as coisas. Descobertas inusitadas, encontros inesperados e improváveis conexões... Tudo isso é pano para as mangas onde entocamos os nossos planos, presentes ou futuros. Neste caso, antecipei nosso encontro com essa cartinha só pra chorar um pouquinho nos seus ombros, mesmo que o lamento não seja presencial. 

Nessa profissão, a tragédia ainda mexe comigo. A catástrofe me arrebata, como uma ópera. A desgraça me assanha, feito um poema do Mallarmé. A angústia me move, como o impulso de um poro. O infortúnio me comove, claro, mas também me atiça. Não que eu seja um abutre, faminto, diante de uma mesa farta de reveses. Isso nunca! Sou no máximo um serviçal desse “banquete”.

Não me faltaram desastres nestes 30 anos de jornalismo. Alguns episódios, porém, foram tão marcantes que mudaram para sempre o rumo da minha prosa: o desabamento do edifício Raimundo Farias, no dia 13 de agosto de 1986, a queda de dois helicópteros sobre o aeroporto de Macapá, em maio de 1996, e o terremoto no Haiti, em 12 de janeiro de 2010. Aqui, vou falar de um; dos outros, conto pessoalmente amanhã.

A primeira catástrofe a gente nunca esquece. Eu era um repórter em fraldas, engatinhando sobre os escombros do edifício desabado. Sob as ruínas, dezenas de operários soterrados. Entre o céu e o inferno, equipes de bombeiros faziam o Diabo e tudo o que Deus permitisse para encontrar sobreviventes.

Eu nem devia estar ali. O Euclides Farias, repórter do horário (um sujeito experiente, dono de excelente texto e uns poucos deslizes), estava tão atrasado que o chefe de reportagem, Anselmo Gama, decidiu colocar-me no fogo:

- Cara, vai lá e traz a história. Se tu não conseguires, nem volta – ele brincou (eu acho).

Fiquei no local, ali perto da Doca, das 4 da tarde às 8 da noite, quando fui para a Redação escrever minha matéria. Sob as chicotadas do editor, na época o Ronald Junqueiro, eu espouquei meus dedos na velha máquina datilográfica, relatando o que vi e apurei em cinco laudas, repletas não apenas de fatos, mas principalmente de emoção.

Saí da redação tão desnorteado, que não consegui ir pra casa. Voltei para os escombros, onde fiquei por mais 24 horas e de onde saí derrotado pela fugaz convivência com um dos operários soterrados.

Ele estava numa galeria formada pela justaposição de lajes, 5 metros abaixo de nós. Por uma fresta nos escombros, era possível falar com ele. Chegar a ele, porém, exigiria dos bombeiros a abertura de um túnel transversal, uma operação delicada. O chefe de operações se aproximou de nós, repórteres:

- Pessoal, preciso da ajuda de vocês. Nós vamos resgatar esse operário. Enquanto isso, conversem com ele, tentem animá-lo, distraiam o cara, porque não vai ser fácil nem rápido.

Eu, o fotógrafo Ary Souza e os repórteres Euclides e Ana Célia, nós todos de O Liberal, juntamente com o Cláudio Lobato, da TV Cultura, nos debruçamos nos entulhos e de lá de cima batemos aquele papo com o homem, tentando mantê-lo bem humorado e esperançoso. Quatro horas depois, ele foi resgatado. Comemoramos como se fosse um gol do Remo... 

Ou do Paysandu, ok.

Ao sair do buraco, vendo-se renascido, o operário, agradecido, quis saber quem eram os caras que ficaram conversando com ele, e o bombeiro apontou pra nós. Ele nos olhou e sorriu aquele sorriso de quem comeu feijão com arroz como se fosse o máximo.

Depois morreu, fulminado por um infarto.

Nenhum de nós, nem os repórteres, nem os bombeiros, nem os sobreviventes, nem os curiosos, nem os transeuntes, nenhum de nós, conectados ali pelo imponderável, em meio a uma tragédia que ainda nos reservava crueldades tão vis, nenhum de nós conteve as lágrimas.

Nenhum de nós saiu inteiro daquele episódio. Alguma coisa ficou soterrada ao lado da vida banida daqueles operários. Junto do sorriso perdido do nosso amigo.

Ainda me emociono quando lembro disso, 30 anos depois. 

Hoje me lembrei, a caminho da Embrapa, onde o avião caiu. E já que sem saber nem planejar acabamos conectados, aqui e agora, me sinto na obrigação de lhe pedir que enfrente com bravura as tragédias que vierem. Afinal, as pessoas precisam de informação e os abutres de alimentos. 

Mas quando isso acontecer, chore ao chegar em casa. Por favor, chore, como estou chorando agora. 

Mesmo que isso não esteja nos seus planos.

Não somos abutres. Somos pessoas. Somos operários.

Eu e você, tenho certeza que somos.






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Toni Remigio
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